25 de setembro de 2006

Os homens e as aves (P)


Alexandre O’Neill e o Movimento Surrealista
Portugal

A POMBA

E vou. É o segundo andar, lado esquerdo, de um prédio no bairro social do Arco do Cego. Toco à campainha e uma pitosga de uns 30 anos abre a porta. Será a tua irmã. Não, irmã não será, pois tiveste uma zanga com o teu pai e agora vives na casa de um tio materno. Deve ser tua prima. Seja ela quem for, olha para mim muito desconfiada mas lá te chama, esganiçada: Alexandre, Alexandre! Surges ao fundo do corredor, dás uma corridinha, puxas-me pelo braço, levas-me até ao teu quarto.
Uma cama, uma secretária, estantes com livros e um armário de metal, com grandes gavetas a rolarem sobre esferas. Abres uma delas, dezenas de pastas. Retiras seis ou sete e começam a saltar poemas de Maiakovski, Neruda, Aragon, Éluard e a sua catalisadora Liberté, je dis ton nom! Também um desconhecido (pelo menos, para mim) de nome Bertold Brecht. Fico espantado: a poesia organizada como se fosse arquivo comercial? O alemão, o Brecht, é um deslumbramento, cativa-me a sua concisão. Tanto que, uma semana depois, de rajada escreverei seis poemas a la Brecht, um deles de pesar pela morte do camarada Estaline. E tu irás gostar dos meus versos, insistirás para que eu não desista. Insistência vã, estou mais calhado para a prosa...
- O’Neill, ouve lá: a poesia desta malta não pode ficar açambarcada aí, tem que estar ao alcance de toda a gente.
- Também acho!
Assim nasce a ideia de um jornal clandestino de poesia militante. Em homenagem à pomba de Picasso vai chamar-se A POMBA. Das traduções cuidas tu. Da impressão cuido eu porque o meu pai tem um mimeógrafo no seu escritório na Praça dos Restauradores. Imprimo à noite e ele nem dá por isso...
Lançamento do jornal? Proponho:
- Já que de lançamento se trata, então vamos lançar A POMBA do 2.º balcão para a plateia do Tivoli, numa daquelas sessões cine-culturais de 5.ª feira ao fim da tarde. Vai ser uma bonita revoada...
Hesitas:
- Acho que a malta da Oposição não vai aprovar a iniciativa.
- Não te preocupes. Disso trato eu.
E trato. Converso com um dirigente do MUD JUVENIL (*) . Conto-lhe o plano, mostro-lhe os poemas. Dias depois avisa-me que a Direcção é contra, agitação é agitação, poesia é poesia, não pode haver misturas, eles é que sabem... Tu, O’Neill, embora não sejas militante mas apenas um compagnon de route, parece que os conheces melhor do que eu... Mas se entre nós está combinado, combinado está e avançamos, que se lixem os sabichões... À última hora, para amansar os gajos do JUVENIL, sugeres que eu inclua n’A POMBA o meu poema de pesar pela morte do Estaline e eu incluo. Porém assino com pseudónimo, suicida eu cá não sou...
E numa 5.ª feira à tarde lá estamos nós no 2.º balcão do Tivoli. A sala às escuras e quando surge a última cena do filme, puxamos os cordelinhos e AS POMBAS descem em revoada. Com um senão: atrapalhas-te e deixas cair uma pilha de pombas sobre os cornos de um espectador. Mugido lancinante, lá em baixo:
- Ai o caraças... Acendem-se as luzes, gritos, gargalhadas, palmas, todos a quererem apanhar AS POMBAS, confusão, um sucesso. Sorridentes, nós por ali à coca. Até chegar a PIDE...

Jan Kubelik plays "Zephyr" by Hubay