21 de dezembro de 2006

Revista da armada (portugal)


HISTÓRIAS DA BOTICA (32)

O Papagaio de Papel entre o mar e o céu...
Élugar comum afirmar-se que cada homem tem uma criança dentro de si. Um outro lugar de comum é o de que os militares são pessoas sem grandes sentimentos, rudes e, muitas vezes, psicologicamente violentos, ou, se quisermos, simplesmente insensíveis. Ora eu, hoje e agora, venho contradizer tudo isto com um papagaio de papel...Um papagaio de papel, como todos sabemos, é apenas um brinquedo de criança, mas pode ser muito mais....pode ser a representação do sonho que cada homem tem de libertação, duma existência terrestre, sem emoção....
Aconteceu que, há algum tempo, em determinado navio que atravessava o Atlântico, se decidiu, fazer um concurso de papagaios de papel, para cortar a monotonia da viagem e algum desencanto pelo esforço de navegação continuada, a que se sujeitara a guarnição nos últimos 6 meses. A ideia tinha partido do Imediato, um homem criativo, afável e respeitado por todos. A princípio não acreditei que resultaria: isto de homens adultos irem “brincar”, no meio do Atlântico, com papagaios de papel, parecia-me estranho, inverosímil...
Mas estava errado. Formaram-se rapidamente grupos, geralmente por Serviços, iniciando-se a construção do papagaio dos electricistas, dos manobras, dos artilheiros e por aí adiante...Como o Serviço de Saúde não ia concorrer, por declarada falta de jeito do seu chefe e porque os outros oficiais poderiam ser acusados de parcialidade, ao julgarem os artefactos voadores dos seus mais directos subordinados, acabei presidente do Júri de tão inovador concurso.
Quanto aos papagaios, começaram a surgir de todas as formas, tamanhos e cores. Alguns tinham a forma clássica, triangular com uma comprida cauda. Outros tinham estruturas mais elaboradas, com formas inovadoras, em estrela, em hexágono, ou em octógono. Contudo, se bem que a originalidade fosse importante, o principal critério de classificação – havia sido superiormente determinado – era a simples capacidade para voar...Neste critério, tinham alguns construtores – assim pude perceber mais tarde- descurado a aerodinâmica.
Deste modo, no dia aprazado para o concurso, algumas entidades pretendentes a voadoras, ao deixarem a rampa de lançamento, improvisada na tolda e apesar dos ventos favoráveis, iam, quais pelicanos em voo picado, mergulhar no azul - violeta daquele mar... Cada papagaio que era largado (quer voasse, ou não...) era brindado por uma claque galhofeira, que muito contribuía para o clima de alegria, envolvente e prazenteiro, na melhor tradição naval...
Após cerca de uma hora, com maior ou menor dificuldade, restavam cinco papagaios – alguns repescados e retocados - que sobreviveram ao teste de voo e iam lá no alto. Até que, por fim, chegou um de forma octogonal, que logo chamou a atenção dos classificadores. Era enorme e tinha uma engenhosa estrutura, produzida em verdadeiro alumínio. Sobretudo voava, voava como o verdadeiro animal que lhe dá o nome. Os artistas eram os cozinheiros, em particular um Marinheiro, de olhar claro e calmo, oriundo da cidade da Guarda...
Mesmo a restante competição acedeu, sem discussão, ao indesmentível facto de que aquele era o melhor em todos os itens...A claque estava agora, subitamente silenciosa e os poucos sons que se ouviam eram de pasmo...Ganhou e ganhou bem.
Ficou preso à balaustrada de bombordo e, passadas algumas horas, parecia indissociável do navio...No dia seguinte ainda lá estava e eu, amante da solidão e da beleza que o pôr do sol, a navegar, permite observar, não consegui deixar de me pasmar com as suas reviravoltas lá no cimo - junto às nuvens, junto do azul alaranjado do céu, a essa hora...Imaginava-me perto dele, naquele lugar pacífico, que sei existir entre o mar e o céu, onde morre a dor, onde os homens se encontram com o mundo, conhecido dos muitos apreciadores das coisas verdadeiramente belas da vida...
Outros o observaram em silêncio, durante os três dias que acompanhou o navio. Após esse tempo, pressentindo a aproximação de tempestade, o seu criador decidiu cortar-lhe o cabo que o ligava a este mundo. Achou que ele já tinha cumprido a sua missão e que deveria voar até um final no Atlântico, que o viu nascer. A tempestade veio e passou. O azul do mar, que muda como os olhos das mulheres bonitas, também mudou ao chegarmos à América e o mundo continuou como se não tivesse havido papagaio de papel...
Hoje, muitos dos que estiveram comigo nesse navio, já nem se lembrarão deste concurso. Eu próprio, perdido nas memórias do meu desencanto, quase o tinha esquecido até que alguém me chamou a atenção para a “desusada” intimidade de algumas das palavras que tenho escrito, espantado com a “permissividade” dos militares. Foi então que me surgiu, com a força de um poema, o papagaio de papel em todo o seu esplendor. Ele afirma, lá do alto, a certeza de que os homens fardados, também têm sentimentos, também têm direito a sonhar...Esses sonhos, essa sensibilidade, permitiram, por exemplo, que de um navio operacional, moderno, nascessem por milagre e à medida das necessidades - que eram muitas - pedreiros, carpinteiros, pintores de construção civil, num outro navio em que também compartilhei sonhos...
Muitas vezes vi resultados excelentes obtidos por superiores que permitiam o sonho aos seus subordinados, de uma forma que, felizmente, muito engrandece a Marinha.
Um papagaio de papel ligado a um navio de guerra, no meio do oceano, não diminui o país que ele representa. Muito pelo contrário, no devido contexto e local, pode representar no coração de cada um, a capacidade de criar, de não ser número, de ser ele próprio: livre e orgulhoso, criativo...importante.
Quanto a mim já pensei em fazer o meu próprio papagaio de papel para lançar numa janela do Hospital. Tenho a certeza que pelo menos os doentes apreciariam. Mas não sou bom construtor e seria, certamente, incompreendido. Em vez disso, prefiro acreditar no coração dos homens simples, roubar-lhes, secretamente, os sonhos e dar deles conta nestas palavras, infelizmente, íntimas...Só assim sei viver. Só assim sei escrever. E se algumas vezes desisti desta ilha dos sonhadores, foi para poder sobreviver - mas lá voltarei sempre, porque me sinto só e perdido, sem casa e sem rumo, quando a imaginação morre e ganha o cinzentismo da alma...
A todos os que permitiram a publicação e lêem estes textos queria, finalmente, agradecer (acho que de forma egoísta, até agora, nunca o tinha feito por escrito). Sem eles já teria soçobrado neste sonho de escrever, sentimentos...
Doc

Jan Kubelik plays "Zephyr" by Hubay