
..."A mais nobre aparição de um papagaio na literatura ocorre na obra-prima “Um Coração Simples”, de Gustavo Flaubert, conto escrito em 1876 que gira em torno da vida sem eventos da dedicada empregada doméstica Felicité. Sem eventos? Para quem um dia é sempre igual ao outro, não tem amores nem conhece outras terras senão a pequena Pont l’Évêque, grande evento foi quando uma família vizinha mudou-se e deixou-lhe de presente o papagaio que tinha em casa. O papagaio passa a absorver-lhe a afeição. Um dia morre, e ela manda empalhá-lo. O papagaioreina agora imóvel em seu quarto, “esplêndido sobre um galho de árvore parafusado a um pedestal de acaju”. Na igreja, ao contemplar a pomba que simboliza o Espírito Santo, Felicité começa a achá-la parecida com o papagaio. Mais um pouco, e chega à conclusão de que o papagaio simboliza melhor o Espírito Santo do que a pomba, pois é dotado do dom da fala. No recôndido do quarto, Felicite adquire o costume de, ao se pôr a rezar, voltar os olhos para o papagaio. Enfim, em seu leito de morte, ao exalar o último suspiro, ela “acredita ver, no céu que se entreabre, um papagaio gigantesco, planando sobre sua cabeça”. Não há intenção de comicidade, no autor, e sim de flagrar a simplicidade de alma em estado puro. E para isso escolhe um papagaio! O bicho aqui desempenha papel oposto ao do malandro falastrão, com inclinações fesceninas. Enquanto se ocupou do conto, Flaubert manteve sobre a escrivaninha um papagaio empalhado, que tomou emprestado do Museu de História Natural de Rouen. A intenção era deixar-se tomar pelo espírito da ave, segundo escreveu a uma amiga. Seria brasileiro o papagaio de Flaubert? O do conto viera “da América”. “Seu corpo era verde, a ponta das asas rosa, a fronte azul, e a garganta dourada”. Flaubert era um sacerdote da precisão, mas, com todo o respeito pelo mestre, a “garganta dourada” seria mais propriamente amarela, pois cor dourada falta, no repertório dos papagaios. Da mesma forma, a ponta rosa da asa seria mais exatamente vermelha. E pronto: com toda a probabilidade, estamos diante de um Amazona aestiva. Um dos nossos. Verde, amarelo e azul, como a bandeira nacional. Quanto ao papagaio que Flaubert tinha sobre a mesa, foi objeto de cerrada investigação por parte do romancista e ensaísta inglês Julian Barnes, autor de um livro de 1984 chamado, justamente, O Papagaio de Flaubert. Barnes (ou o personagem que ele inventa para o livro, mas que faz uma investigação real) visita o Hôtel-Dieu (equivalente a uma Santa Casa no mundo luso-brasileiro) de Rouen, onde Flaubert nasceu, filho do cirurgião residente, e lá, num museu com reminiscências do escritor, depara com um papagaio empalhado descrito como o que Flaubert manteve consigo enquanto escrevia “Um Coração Simples”. Depois vai ao museu instalado no que resta da casa onde o escritor morou, em Croisset, nos arredores de Rouen, e lá depara… com outro papagaio, igualmente descrito como o de Flaubert. Qual seria o verdadeiro? Barnes chega à conclusão de que nem o Museu de História Natural, que emprestou o bicho ao escritor, sabe qual o verdadeiro — e que, ao ser solicitado, destacou um exemplar qualquer de sua coleção para presentear tanto o museu do Hôtel-Dieu quanto o de Croisset. O do Hôtel-Dieu é possível visitar pela internet. Na página do Museu Flaubert de História da Medicina (Musée Flaubert d’Histoire de la Médecine), opção “algumas peças da coleção” (quelques pièces de collection), surge-nos um bichinho de plumagem verde, entremeada de amarelo no peito e ao redor do bico e dos olhos, cocoruto azul, um pouco de amarelo também no alto das asas. Ele se exibe trepado num poleiro que mais parece um telefone antigo. A legenda especifica que se trata de um Amazona. As cores são de um Amazona aestiva. Mais uma vitória. Também o papagaio tido como de Flaubert no Hôtel-Dieu de Rouen é nosso. 
